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Arrebatamento e a Experiência Religiosa


“Você realmente acredita que um dia você vai ser julgado?” Relato do meu colega Rodrigo Ferreira.


Há uns poucos meses atrás assisti a um vídeo que consistia num trecho de um sermão de um pastor de uma igreja batista dos Estados Unidos. O vídeo era muito bem editado, com efeitos visuais de qualidade e tudo o mais, e o sermão do pastor muito bem executado. A entonação da voz, os recursos visuais, tudo colaborando para alcançar certas reações no expectador. Eu não sei bem o que eu estava fazendo assistindo aquele vídeo, mas quando eu ligo o computador e acesso a internet normalmente é assim que funciona: eu começo com uma página e vou navegando… Em algum ponto eu já estou com mais de 20 páginas abertas sem fazer a menor ideia do que eu estava querendo em primeiro lugar.


Antes de continuar meu relato preciso esclarecer: não sou cristão, não sou sequer religioso e só não sou ateu porque acho um pouco demais afirmar que Deus não existe considerando o pouco que sei sobre o que há lá fora. Então não esperava que minha reação ao vídeo fosse nada além do usual “Ai, quanta bobagem… Isso não faz o menor sentido.” Comecei, então, a assistir ao vídeo muito cético e qual não foi a minha surpresa quando, mais ou menos no meio do vídeo, comecei a me debulhar em lágrimas. Eu chorava feito uma criança, soluçante, as lágrimas descendo pelo meu rosto copiosamente e cada nova frase do pastor me fazia chorar mais.


Por alguma razão parecia que aquele choro estava entalado em mim há muito tempo e devia ter muita coisa contida porque eu não conseguia parar de chorar. Mesmo depois do término do vídeo eu continuei chorando. Se você perguntar por que eu chorava, eu simplesmente não sei responder, mas sentia como se algo muito maior do que eu tivesse me acertado em cheio e feito transbordar em mim um sentimento de pequenez para o qual a minha única reação era me encolher e chorar. Eu pensava nas mazelas do mundo e chorava; eu pensava na vida e chorava; eu pensava em mim mesmo e nas pessoas que eu amo e chorava. Era um choro de felicidade, misturado com um choro de deslumbramento… Era um choro de arrebatamento. Eu me sentia, de fato, arrebatado. Tomado por algo muito maior do eu e posto frente a frente com a minha insignificância.


Provavelmente, se eu estivesse em uma igreja ouvindo o sermão, ao invés de estar em casa sentado na frente do meu computador, eu seria recolhido para o grupo dos “tocados pelo Espírito Santo”. Mas ao invés de ir procurar um líder religioso de qualquer natureza, fui ao encontro de um grande amigo meu que acredita em Deus, mas que tem um senso crítico muito apurado, uma clareza mental que eu admiro muito e que me conhece muito bem. Eu pensei “Se tem alguém que pode me ajudar a colocar a cabeça no lugar, é ele”. Fui andando pela rua em direção a casa dele ainda chorando. Eu já nem me lembrava do vídeo exatamente, mas as portas estavam abertas, minhas guardas foram suspensas e eu estava completamente vulnerável. Chorando sem parar no meio da rua, no melhor estilo novela mexicana eu seguia andando em direção a casa do meu amigo com um questionamento na cabeça “Será que eu sou Cristão sem saber?”.


Agora eu faço uma pausa no meu relato pra me explicar: não quero parecer nem extremamente idiota e nem extremamente cético. Não gosto de extremos, acho sempre que o bom caminho é o do meio. Pois bem, quando eu disse que não sou religioso, isso não quer dizer que religiões não me interessam. Pelo contrário, me interessam e muito. Todas as questões existenciais profundas que as religiões procuram responder são questões que também ocupam bastante a minha cabeça, só que eu nunca encontrei até hoje uma religião que as responda de uma forma suficientemente satisfatória para mim. Algumas respostas até me satisfizeram durante certo tempo, mas não demorou muito para que elas se juntassem ao monte de verdades não tão verdadeiras assim. O fato é que eu nunca cheguei a sentir que eu estava certo de nada. Talvez a busca por certezas seja a busca errada, mas isso é papo pra outra reflexão… Enfim, o que quero dizer é que eu não sou tão cético assim a ponto de achar que não existe nada metafísico por aí, mas também não sou tão idiota a ponto de acreditar em qualquer fantasma de lençol.


Alguma coisa naquele vídeo me acertou em cheio por alguma razão e o meu amigo me ajudou a vislumbrar o que poderia ser. Quando cheguei à casa dele, sentei-me ao sofá e contei o que havia acontecido. Eu falava ainda chorando, na expectativa de que depois de me ouvir ele me dissesse algo que fizesse sentido, porque o que eu tinha vivenciado até então não fazia muito.


— Você tem consciência de que este tipo de material é feito exatamente com o objetivo de provocar esta reação nas pessoas? — ele disse.


Eu parei de chorar e pensei por uns instantes.


— Não sei… Acho que não. Quero dizer, eu achei que tinha assim que comecei a assistir ao vídeo, mas aí eu comecei a chorar e esqueci-me disso.


— Pois é, mas você sabe que conhecer o processo não te torna imune a ele, não é mesmo?


— É, eu acho que acionando os gatilhos certos, mesmo que nós conheçamos os gatilhos não dá pra evitar a reação. — minha cabeça começava a voltar para o lugar certo.


— Exatamente. Olha, se você me disser que essa sua reação ao vídeo realmente fez você sentir algo pelo que você estaria disposto a mudar a sua vida, a forma como eu vou tratar isso vai ser outra completamente diferente, mas eu duvido que este seja o caso…


— É, acho que concordo com você, mas… Mas você viu o vídeo? Você não sentiu nada?! Quer dizer, eu já vi vídeos assim e eu nunca reagi desta forma.


— É, mas você nunca havia visto vídeos deste tipo em inglês, né?


— É, acho que não. Você quer dizer que pelo fato do vídeo ser em inglês ele pode ter me acessado de uma forma diferente que as mesmas coisas ditas em português?


— Também. O fato é que o vídeo é criado exatamente com este intuito. Essas pessoas são treinadas para colocar outras pessoas exatamente neste estado em que você se encontra. Elas não fazem isso por acaso, elas sabem o que estão fazendo e fazem muito bem.


— Entendi.


— Assista ao vídeo de novo e me diga o que você sente, ok?


— Tá.


Um pouco hesitante, assisti novamente ao vídeo. Confesso que ainda senti alguma coisa, mas não com a mesma intensidade que antes. Não senti vontade de chorar. Minha cabeça já estava enxergando as coisas através de outro prisma.


— Você percebeu sobre o que é o vídeo? — meu amigo acrescentou assim que terminei de assistir.


— É… Não sei. Várias coisas, né?


— Não, este vídeo é sobre Julgamento Final. Agora, a pergunta interessante é: você realmente acredita que um dia você vai ser julgado?


Fiquei em silêncio refletindo durante algum tempo.


— Sei lá, parece que sim…


Fiquei mais um pouco lá na casa dele vendo uns vídeos besteirol no Youtube pra me distrair e voltei pra casa com a questão na cabeça. Será que eu realmente acredito que um dia serei julgado?


Aqui cabe uma diferenciação entre crença ostensiva e crença oculta, uma teorização minha, muito incipiente e baseada unicamente nas minhas próprias reflexões. Se alguém já escreveu sobre isso, eu ainda não li o suficiente pra saber.


Vou pegar emprestada a definição de “crença” do Houaiss:


Crença: sub. fem. ato ou efeito de crer. 1) estado, processo mental ou atitude de quem acredita em pessoa ou coisa. 2) fé, em termos religiosos. 3) convicção profunda. 4) opinião manifesta com fé e grande segurança.


A crença exite na esfera mental e se manifesta no domínio físico observável através das atitudes das pessoas. Sabemos que muitos dizem acreditar em certas coisas, mas não agem de acordo, então também é possível que alguém diga não acreditar em algo, mas aja como se acreditasse. Presumindo que são as crenças pessoais íntimas que norteiam as atitudes de uma pessoa, alguém que ostente uma crença, mas tenha atitudes em desacordo com esta, tem também uma crença oculta, ou seja, não ostensiva, que é mais verdadeira do que que a crença ostentada, já que é essa crença oculta que norteia as atitudes daquela pessoa. Essa crença oculta pode ser oculta somente para os outros, mas muito clara para a pessoa, que esconde conscientemente sua crença, seja lá por quais motivos. No entanto, esta mesma crença pode estar ocultada até mesmo do próprio crente, que não faz a menor ideia de que crê no que crê, até que algo aconteça e ele tome uma atitude automática que seja concordante com a crença oculta e esta se torne de algum modo evidente. Naturalmente, uma crença ostensiva pode estar de acordo com as atitudes, isto é o que se espera. Neste caso temos uma crença consistente por se manter coerente em face as atitudes daquele que a sustenta. No caso de crença e atitude discordantes, temos, analogamente, uma crença inconsistente.


Devemos entender essas relações entre crenças e atitudes como algo fluido e em perpétuo movimento. As crenças de uma pessoa mudam no decorrer da vida e as atitudes de alguém também são afetadas por outros fatores que não unicamente as crenças do ator. Minha análise equivale a análise de uma fotografia, que é uma paralização no fluxo usual do tempo. Do mesmo modo que analisar uma fotografia não implica na compreensão do tempo, minha análise não tem a pretensão de ser capaz de avaliar a complexidade do sistema de crenças humanas, mas me serve na compreensão deste caso pessoal em particular.


O que ocorreu comigo foi que eu me deparei com uma de minhas crenças ocultas. Assim como a pessoa que se diz supersticiosa e se desespera ao ver um chinelo virado, eu me professo não religioso, não cristão, mas acredito sim, em algum grau, que pode ser muito mais relevante do que eu imagino, que um dia serei julgado por Deus, ou por algo muito maior do que eu, que sabe tudo o que faço e o que penso o tempo todo.


A principal questão que surge a partir desta constatação é: que controle eu tenho sobre o que eu mesmo acredito?


Sinceramente, eu não sei. E acho que esta é uma daquelas perguntas que serão sempre perguntas. Algumas coisas simplesmente não tem resposta, ou não tem apenas uma resposta. Talvez a busca por certezas seja mesmo uma busca errada, mas, como eu já disse, isso é papo para outro reflexão.


Rodrigo Ferreira é programador visual e estudante de psicologia.

Igor Teo é psicanalista.


Fonte: http://www.deldebbio.com.br/arrebatamento-e-a-experiencia-religiosa/#more-5927

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